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Caverna do Diabo

1.

Odeio o clima daqui. Sempre odiei, desde que mudei pra cá. No inverno faz muito frio, o movimento do turismo some e ninguém sai de casa pra nada. Parece uma cidade fantasma. No verão, o exagero é oposto: faz calor demais, gente demais na cidade, não dá pra ter sossego.

No último domingo, eu já acordei incomodado com meu suor e ainda eram oito da manhã. A essa hora já estava quente além do razoável, daquele jeitinho insuportável que às vezes fica quente por aqui.

Antes, eu tinha me planejado para ficar em casa mesmo. A minha única esperança de passar por aquele dia tendo um pouco de sossego era me trancar e não abrir pra ninguém.

Queria ignorar a vizinha, se ela viesse de novo tentar puxar assunto logo cedo. Queria ignorar qualquer imbecil do parque, se algum deles viesse me chamar para ir em algum bar xexelento.

Principalmente, eu queria ignorar as crianças que eu tinha certeza que apareceriam fantasiadas, em algum momento da tarde, para pedir doces.

Não faz o menor sentido, para começo de conversa. 31 de outubro em Eldorado, cidadezinha de só quinze mil habitantes no interior de São Paulo, não era pra significar merda nenhuma.

Mas o povo daqui é desocupado e entediado o suficiente para comprar qualquer ideia mesmo.

Por pura falta do que fazer, nos últimos anos começaram a popularizar as festinhas de Dia das Bruxas na região, em grande parte como mais um joguete para tentar conquistar os turistas.

Simplesmente não queria me envolver. Eu me recuso a fazer parte do circo, dessa palhaçada toda, fora do meu horário de trabalho.

Mas foi o calorão que, infelizmente, frustrou meu plano inicial de ficar quietinho em casa, jogado no sofá assistindo televisão.

Não dava pra ficar preso em casa num dia infernal de quente como aquele.

Então eu levantei da cama resmungando, empapado de suor, tomei uma ducha fria, peguei meus equipamentos todos e daí saí.

Peguei o carro e fui pra estrada como se fosse um dia de trabalho normal. Fiz meu longo caminho pela estrada toda esburacada, mais de quarenta quilômetros, quase uma hora de viagem.

Nunca fez muito sentido pra mim a cidade ser tão longe da sua principal atração turística. Mas é assim que Eldorado funciona. E como a maioria dos turistas passa primeiro por lá, é de lá que eu costumo sair com eles para seguir viagem até a caverna.

Eu senti um alívio bem grande quando cheguei no parque.

Primeiro, já fiquei bem só de ver o diabinho na placa de entrada. Gostava dele, sempre me pareceu bem simpático. Era uma recepção que parecia ironicamente acolhedora.

Depois, fiquei bem aliviado porque o parque estava pouco movimentado, o que era de certa forma atípico, mesmo que nos últimos dois anos até os fins de semana tivessem sido mais vazios.

Pelo caminho, alguns funcionários me reconheceram e me cumprimentaram. Fizeram aquelas perguntas de sempre, se tinha ido lá para guiar alguma excursão, se estava tudo bem, se não era meu dia de folga…

Era meu dia de folga, sim senhor.

Era por isso mesmo que eu tinha decidido dirigir quarenta quilômetros até chegar lá pra viver meu dia de folga direito.

Não fui direto pra caverna. Parei primeiro na praça de alimentação, tomei um café da manhã rápido. Olhei o dia (estava lindo) e as poucas pessoas passando de um lado pro outro.

Apesar do movimento ainda estar fraco pra época, já melhorou um pouco comparado ao que foi ano passado. O povo começou a ficar mais otimista, dizendo que o pior já passou.

Mesmo nas piores fases, quando não tinha ninguém para guiar e tudo estava fechado, continuei indo pro parque. Simplesmente não aguentava ficar em casa sem fazer nada.

Então nesse domingo não estava fazendo nada exatamente novo para mim. Já tinha criado o costume de ir até lá só pra explorar a caverna sem ninguém me incomodar.

Tinha feito isso várias vezes, na verdade. Sempre que precisava fugir do mundo de algum jeito. Na caverna eu costumava sentir paz e alívio.

Era como se lá fosse minha casa de verdade.

Depois de comer, eu peguei todos os meus equipamentos. Daí sim fui pra trilha.

Subi o caminho todo sem pensar muito em qualquer coisa, só indo bem rápido. Queria aproveitar bem meu dia e meu tempo lá dentro, não no mundo aqui de fora.

Também não senti nada quando olhei para a entrada da caverna. Tinha poucos turistas, mas mesmo que tivesse só um, isso já estragava um pouco o impacto. Ter gente ali significava que eu ainda não estava onde queria estar.

Passei pelas primeiras galerias ainda no mesmo modo meio automático. Só prestei um pouquinho de atenção na galeria dos órgãos e no caldeirão. Eram as únicas partes do percurso aberto que ainda me impressionavam um pouco, mesmo depois de anos passando por lá várias vezes por semana.

Esse percurso todo (a trilha, a parte da caverna aberta para turistas) demorou mais ou menos uma hora e só me fez ficar ansioso e impaciente com qualquer voz humana que ainda ouvia, mesmo bem longe.

Então quando saí da área dos turistas e me enfiei de verdade na Caverna do Diabo, naquele pedaço que só eu e meus colegas espeleólogos experientes podemos acessar, aí sim eu me senti mesmo em paz, em muita paz.

Liguei uma lanterna e olhei pras formações rochosas. Acelerei um pouco, me enfiando mais e mais no meio dos complicados caminhos.

Já era quase uma da tarde quando parei outra vez. Fiquei sentado sozinho. Não ouvia nada. Nada de nada, ninguém. Só umas goteiras, som de água por perto, coisas assim.

Suspirei bem fundo, mergulhando no silêncio.

Fiquei observando as pedras. Já tinha passado do lago e estava numa seção da caverna que tinha pelo menos uns cinco meses que não visitava.

No dia a dia, não sobrava muito tempo pra ir tão fundo.

Além disso, tinha outro problema: é meio errado fazer isso que fiz, sair se enfiando mais pro fundo da caverna sozinho, sem avisar ninguém. Ao mesmo tempo, costuma ser difícil combinar horários com alguém para ir junto, ainda mais no meu caso. Sou um cara meio fechado e não gosto muito de gente.

Mas quando se vai para o fundo de uma caverna gigantesca e inacessível pra fugir de gente e ficar em silêncio e em paz, não faz muito sentido levar alguém junto para estragar a solidão.

Decidi seguir mais, mais e mais fundo. Queria chegar até meu limite, o máximo que já tinha alcançado. E fiz exatamente isso, lá pelas três da tarde.

Sozinho e feliz, dei uma risada que ecoou pelas rochas.

Eu me senti abraçado pelo mundo.

No centro da terra, longe de todos os probleminhas e besteiras lá de cima, longe de todo mundo. Distante de todas aquelas crianças da cidade que estavam passando o dia incomodando os outros, batendo na porta das casas pedindo doces.

E porque não sou maluco, foi nesse momento que decidi que era hora de voltar.

Eu posso até ser irresponsável, mas suicida não sou. Não ia sair caminhando para além do que já tinha ido naquele contexto, sem ajuda nenhuma.

Só o que me parou foi uma forma esquisita numa parede. Era só alguns passinhos para frente do máximo que já tinha ido, então cedi à pequena tentação de pelo menos ir só até lá.

Era uma fenda. Não lembrava dela existir antes.

Fiquei muito, muito curioso.

Era grande o suficiente para alguém passar por ela.

Antes, enfiei só minha lanterna e olhei o que tinha lá dentro.

Só para matar a curiosidade mesmo.

Mas eu vi lá dentro algo muito, muito estranho, estranho demais para simplesmente ignorar e voltar bonitinho para a superfície.

Tinha uma escadaria.

Uma escadaria, esculpida na pedra, descendo pros fundos do mundo.

Fiquei indignado por uma série de razões.

Primeiro, porque era estúpido que tivessem depredado a beleza natural da caverna daquele jeito.

Segundo, porque parecia ridículo que alguém tivesse se dado ao trabalho de fazer aquela escadaria gigantesca ali embaixo, já tão longe da área aberta aos turistas.

Terceiro, pela agilidade com que o projeto tinha sido concluído, sem que ninguém tivesse comentado ou ficado sabendo: eu tinha certeza que aquela fenda não existia na última vez que eu tinha passado por ali e foi por isso mesmo que estranhei.

Alguém tinha aberto uma fenda na rocha e depois feito uma escadaria inteirinha, a perder-se de vista. Nos cafundós de difícil acesso de uma caverna subterrânea com mais de seis mil quilômetros de extensão.

Não dava pra ignorar um negócio doido assim.

Além de que não parecia ter nada de muito perigoso em descer uma escada.

Passei pela fenda e entrei.

2.

Desci a escadaria toda achando, a cada degrau pelo qual passava, que era um absurdo cada vez maior que ela existisse.

Não fazia sentido nenhum que uma obra daquele porte tivesse acontecido, muito menos que tivesse sido concluída tão rapidamente e sem ninguém lá em cima falar nada sobre o assunto.

Os degraus eram todos de pedra fria e pareciam ter sido esculpidos de um jeito bem artesanal. Eu fiquei imaginando algum pobre coitado lá embaixo, com um kitzinho de ferramentas, fazendo os degraus um por um, sabe-se lá por ordem de quem.

Eu não tenho mais tanta noção de andares, faz muito tempo que saí da cidade grande. Mas acho que, se pegar das poucas vezes em que eu morei em prédios, eu devo ter descido o equivalente a uns quarenta lances de escada, o que talvez desse mais ou menos uns vinte andares.

Mas é um chute bem grosseiro. Eu não estava prestando muita atenção nisso, contar degraus. Só queria descer tudo e ver onde ia chegar.

Nesse momento, só o que eu sentia era muita, muita curiosidade.

Queria muito descobrir aonde aquela escadaria toda ia dar. Não sentia perigo nenhum, nenhum receio: eu tinha me programado para passar por trechos arriscados de uma caverna traiçoeira e agora estava só descendo uma escadinha bonitinha. O máximo que podia acontecer comigo era cair e descer o resto da escada de bunda.

Alcancei o último degrau e me deparei com uma porta fechada.

Achei isso ao mesmo tempo fantástico e decepcionante.

Sim, era uma porta. Uma porta de metal frio, com tintura branca descascada, ferrugem. Parecia uma porta bem velha, o que fazia menos sentido ainda.

Naquele momento, eu ainda tentava explicar pelo menos logicamente a presença daquela estrutura toda. E racionalmente não fazia sentido que a porta fosse velha, já que eu pressupunha, por mais absurdo que parecesse, que toda aquela obra devia ter sido feita há no máximo alguns meses.

Eu não sabia muito bem o que eu esperava que fosse ter ali embaixo, mas com certeza o que eu esperava não era uma porta.

Eu esperava uma galeria incrível de formações rochosas secretas, um lago especial que tinham descoberto recentemente, uma câmara com o teto cheio de estalactites.

O que eu não esperava era uma porta, só uma porta.

Fiquei pensando como tinham conseguido levar uma porta até ali embaixo. Tinha algumas seções do caminho em que se cruzava lagos subterrâneos e mal dava pra passar uma pessoa por vez, com uso de uma corda por causa dos buracos no fundo, e alguém tinha conseguido passar por todos os desafios do percurso levando uma porta de metal junto?

Pra quê?

Tentei só abrir, mas pareceu emperrada, ou trancada. Fiquei muito incomodado com isso. Se a porta já era algo tão esquisito, pareceu mais esquisito ainda que estivesse fechada.

Fechada por quem? Pra proteger de quem? E para proteger o quê?

Eu tinha certeza que eu devia ser o único enxerido a ter chegado até ali desde que aquela obra maluca toda tinha acontecido.

Além disso, me deixava nervoso a ideia de alguém tornando particular e privada uma parte da caverna que eu sentia ser meu verdadeiro lar.

Era quase como se tentassem esconder um cômodo secreto que eu não pudesse acessar dentro da minha própria casa.

Então fiz questão de forçar a porta mais algumas vezes, insistindo pra ver se ela abria.

E abriu.

A escadaria era estranha, a porta era mais estranha ainda. Mas o que tinha do outro lado da porta era simplesmente absurdo.

Basicamente, do outro lado da porta tinha um apartamento inteiro.

Para começar, tinha um hall. As paredes eram esculpidas na rocha, o teto e o chão também. Era tudo bem úmido e precário, várias infiltrações, mas era, de fato, um hall. Não tinha iluminação nenhuma, então eu dependia da minha lanterna.

Logo à esquerda, tinha uma pequena cozinha. Não tinha móvel nenhum, mas dava para perceber pela disposição que devia ser uma cozinha.

O corredor fazia uma curva depois de duas portas (as duas fechadas, as duas de metal precário) iguaizinhas à porta de entrada. No final tinha outra porta, também de metal.

Eu forcei as duas portas do corredor. Uma deu para um quarto completamente vazio, parecido com o corredor: também todo de paredes cinzas e cheias de bolor e umidade, também sem luz nenhuma.

O segundo quarto era igualzinho, mas com uma única diferença. Tinha uma cama de solteiro encostada num dos cantos, um colchão velho e mofado em cima.

Foi quando vi aquilo que desisti de tentar explicar com lógica. Pensei em alguém tentando descer até as profundezas da Caverna do Diabo carregando várias portas de metal, ferramentas e materiais de construção para erguer um apartamento inteiro, depois uma cama e um colchão.

Não fazia sentido nenhum.

Era inexplicável, completamente além dos limites de qualquer bom senso.

Dali para frente, só o que me movia era curiosidade pura.

3.

Provavelmente era esse o momento em que eu devia ter dado as costas e ido embora.

Já era muita loucura pra um domingo só.

Mas pensem comigo: imaginem que vocês trabalham num lugar há anos e que esse lugar é, de todos os lugares possíveis, justamente uma caverna. Imaginem que vocês julgam conhecer suficientemente bem essa caverna, que afinal de contas é seu espaço de trabalho, e que é também um lugar que vocês sentem sendo meio que um lar.

Imaginem daí que um dia, do nada, vocês descobrem algo completamente inacreditável nesse lugar que acreditavam conhecer intimamente.

E imaginem que esse algo que vocês descobriram foi uma porcaria de um apartamento inteiro, construído sem motivo nenhum, inabitável, sem luz ou móveis (exceto uma cama nojenta), no fundo do nada, depois de uma escadaria enorme que te enfiou no centro da terra, tão longe de qualquer ser humano que você simplesmente não escuta nenhum barulho além de goteiras, pinguinhos fazendo pléc, pléc, pléc.

É, esse é o lugar que vocês encontraram.

Vocês não ficariam curiosos de seguir em frente e descobrir o que pode vir depois? De tentar ver até onde esse absurdo todo poderia ir?

Pois eu fiquei curioso. E decidi seguir.

Arrombei a porta no fim do corredor. Essa não abriu depois de só forçar um pouquinho, tive que arrombar mesmo, dando vários chutões até ela quebrar.

Do outro lado, o que encontrei me deixou num estado parecido ao que tinha ficado quando dei de cara com a primeira porta: era ao mesmo tempo algo fantástico e decepcionante.

Era outro apartamento inteirinho. Algumas disposições das coisas mudavam (nesse, os dois quartos vinham antes da cozinha e ficavam à esquerda, ao invés de à direita), mas era basicamente a mesmíssima coisa. Só que dessa vez não tinha uma cama. No lugar disso, tinha uma mesinha de cabeceira num dos quartos.

Então era, sim, fantástico. Era um segundo apartamento todinho construído nos fundos de uma caverna, oras. Só somava mais um pouco ao absurdo. Ao mesmo tempo, era um pouco decepcionante pela redundância. Depois do primeiro apartamento, era outro apartamento.

Demorei menos tempo investigando as particularidades desse segundo espaço. Fui logo aos fundos do corredor, encontrei outra porta. Dessa vez, ela não estava trancada. Não estava nem mesmo fechada, só encostada.

Abri e olhei do outro lado.

Outro apartamento. Um terceiro, outra vez muito parecido com os outros dois, outra vez só com alguns cômodos numa disposição um pouquinho diferente.

De novo, fantástico, mas um pouco menos. De novo, um tanto quanto decepcionante, agora um pouco mais.

No quarto apartamento, já me senti um tantinho entediado. Ao mesmo tempo, a curiosidade ia crescendo. Eu segui meu caminho, corredor após corredor, apartamento após apartamento. Do quarto para o quinto, do quinto para o sexto, do sexto para o sétimo.

Estavam todos vazios. Todos eram variações sutis uns dos outros, com só algumas coisinhas em lugares um pouco diferentes.

O padrão dos móveis parecia o mais irregular: fui topando mais frequentemente com apartamentos vazios de qualquer coisa, ao ponto em que os apartamentos com qualquer mobília foram se tornando exceções. Quando apareciam, eram sempre os mesmos tipos de móveis velhos de madeira podre. Mesinhas, cadeiras, camas, escrivaninhas. Sempre úmidos, vazios, inúteis.

Fui seguindo no mesmo modo automático em que tinha ficado no caminho até a caverna, perdendo a noção do absurdo da situação pela familiaridade que ia crescendo com a repetição.

Tentando explicar em outras palavras, a variação trazia o mínimo de originalidade para que eu sempre estivesse impelido a seguir em frente, enquanto a redundância fazia com que eu me sentisse aos poucos mais seguro e inquieto.

Não demorou muito para que eu perdesse a noção de por quantos apartamentos passei. Fui seguindo caminho sem me dar conta da hora, do espaço, do quanto já tinha andado, do quanto já estava longe da superfície.

Eu só queria ver onde aquilo ia dar.

Aos poucos, fui sentindo um vínculo crescer com aqueles espaços vazios. Sentia algum carinho por aqueles lugares repetitivos, misteriosos e absurdos.

Conforme ia seguindo, porta após porta, corredor depois de corredor, fui fantasiando com escolher algum daqueles apartamentinhos para ser meu, viver por ali mesmo, nos fundos da caverna.

Parecia um desperdício toda aquela estrutura existir construída nos fundos do mundo, sem uso para ninguém.

Apesar disso, eu sentia que só poderia pensar em parar, escolher um apartamentinho para ser meu, ou até voltar para o mundo lá de cima, se eu encontrasse o fim do caminho.

Uma hora ou outra aquela estrutura toda teria que ter um fim.

Em algum momento eu alcançaria o último apartamento, com o último corredor, que daria numa parede sem uma porta que levasse ao próximo.

Fui seguindo, seguindo, seguindo, por horas e horas, e esse fim não aparecia.

4.

Como o tempo foi passando, fui me acostumando cada vez mais com o silêncio quase total dos apartamentos por onde passava. O que eu tinha me acostumado a ouvir era só o barulho dos meus passos, da minha respiração, de algumas goteiras.

Então quando ouvi outra coisa, foi bem antes de encontrar com a coisa em si.

Ouvi antes de mais nada um barulhinho agudo. Num primeiro momento, achei que podia ser coisa da minha cabeça. Um apartamento mais pra frente, o barulhinho ficou mais alto. Podia ser um bicho. Um apartamento depois, dava pra ouvir bem que era um choro.

As sequências infindáveis de apartamentos vazios e úmidos estavam me deixando cansado, então foi com curiosidade, não com o receio que devia ter tido, que considerei a possibilidade de talvez encontrar outra pessoa lá embaixo.

Dois apartamentos depois, foi isso que encontrei. Uma pessoa.

Na verdade, uma criança. Deitada encolhida no chão de um dos quartos, toda molhada, sozinha e nua, chorando aos soluços.

Ela não reagiu à minha chegada. Aproximei-me mais.

Algumas teorias malucas que tentavam vincular aquela experiência com a realidade lógica começaram a passar pela minha cabeça. Talvez algum grupo conspiratório muito rico, um culto estranho de elites, tivesse construído aquele labirinto de corredores e galerias subterrâneas, na mais profunda escuridão, para realizarem rituais esquisitos. Talvez sequestrassem pessoas e as sacrificassem ali embaixo. Talvez tivessem jogado aquela criança ali para morrer sozinha.

Foi tentando apelar pra esse bom senso pela última vez que, ao ver aquela criancinha, pensei numa realidade do que poderia ser supostamente “razoável”.

Mas eu já tinha abandonado essa realidade razoável fazia algum tempo.

Acho que recuperei também algum senso de humanidade, talvez, e pensei que aquela criança, sendo humana, merecia empatia e cuidado. Não senti medo dela, nenhum.

Sendo ainda mais honesto, na verdade eu acho que, mais do que qualquer ética ou moral sobre empatia, o que me movia ainda era só curiosidade.

Uma criança chorando não parecia mais capaz de me fazer mal do que apartamentos vazios. Mas era mais esquisita ainda que apartamentos vazios, dado que estava nos fundos de uma caverna.

A criança parou de chorar quando toquei suas costas.

Ela virou e me olhou, olhos vermelhos e úmidos.

Era uma menina. Pele bem pálida, como se nunca tivesse visto a luz do sol, cabelos bem compridos, oleosos e cheios de nós.

Perguntei se ela estava bem.

A criança não parecia capaz de falar, então só ficou me olhando.

Perguntei como ela tinha ido parar ali.

A criança só ficou me olhando, sem reagir.

Perguntei se tinha mais alguém ali embaixo.

Mais uma vez, resposta nenhuma.

Eu fiquei sentado com a menina na sala por pelo menos uma hora, tentando extrair dela qualquer reação.

Mas ela não fez nada, não reagiu de qualquer jeito.

Comecei a me sentir inquieto e curioso outra vez.

Se tinha encontrado alguém, talvez estivesse no fim do labirinto.

Ou talvez encontrasse ainda mais pessoas se seguisse em frente.

Movido por essas expectativas, levantei. Perguntei para a criança se ela queria me acompanhar. Expliquei que ia procurar outros.

A criança não esboçou reação.

Prometi que voltaria para buscá-la. Ela não reagiu a isso, também.

Virei-me para sair da sala. Ouvi um soluço outra vez. Olhei para trás e vi que a criança estava deitada encolhida no chão de novo, na mesma posição em que a encontrei, e que tinha voltado a chorar.

Prometi para ela que voltaria para buscá-la. Pensei que talvez isso fizesse com que ela se acalmasse, parasse de chorar e olhasse de novo para mim.

A criança continuou chorando, encolhida.

Fui embora, saindo para o corredor, em seguida para a próxima porta, depois para o próximo apartamento.

5.

Conforme prossegui, um novo padrão parecido ao dos móveis foi acontecendo, agora com pessoas. Elas eram escassas também, mas depois da primeira menina foram aparecendo numa certa constância. Fiz uma conta em dado momento e percebi que a cada quarenta, cinquenta apartamentos, costumava topar com pelo menos uma ou duas delas.

Era uma média bem grosseira, mas foi o suficiente para me impelir sempre a seguir em frente.

Como com tudo que encontrei antes, as pessoas me fascinavam ao mesmo tempo em que me decepcionavam. Fascinavam-me por estarem ali, sabe-se lá como, e por serem tão esquisitas. Mas me entediavam pela repetição das suas limitações: estavam todas sempre nuas, molhadas, sem reagir.

Algumas eram crianças, como a primeira que encontrei. Mas encontrei também adultos e idosos. Homens e mulheres. Algumas ficavam andando em círculos numa sala escura e vazia. Algumas ficavam sentadas, olhando fixamente para a parede.

Algumas, entretanto, pareciam interpretar uma rotina de algum jeito. Sentavam-se na sala, olhando para o nada, mas depois levantavam, iam para outro cômodo e lá deitavam. Depois iam para a cozinha e ficavam lá de pé, mãos se mexendo inutilmente no ar.

Observei com mais cuidado os padrões desses, os que tinham mais do que uma ação. Fui reparando nos ciclos: da cozinha para a sala, num caso de uma senhorinha com olhos brancos de catarata; da primeira sala para o quarto com uma cadeira, no caso de um jovem magrelo de cabeça raspada.

Todos eles tinham o mesmo olhar perdido, distante. Não pareciam reparar em mim de qualquer maneira. Se eu entrava em seus caminhos, eles simplesmente desviavam, ou ficavam parados esperando que eu saísse da frente. Se eu os tocava, eles simplesmente travavam, sem fazer nada e me olhando, até que eu me afastasse. Daí, voltavam a fazer exatamente o que faziam antes que eu os encontrasse.

Em alguns apartamentos, comecei depois a encontrar mais de uma pessoa. Alguns pareciam casais. Andavam de mãos dadas, iam juntos de um cômodo para outro.

Depois, encontrei o que pareciam ser famílias mesmo: dois adultos, um menino; às vezes duas mulheres, uma menina; às vezes uma idosa, um homem adulto, uma menina. Esses padrões também variavam com todas as combinações possíveis.

No começo, as pessoas me deram uma sensação muito ruim. Tinha algo de estranho em topar com elas em sua passividade e distanciamento desumano, repetindo rotinas sem propósito na escuridão de apartamentos vazios no fundo de uma caverna.

Depois, fui me acostumando também com elas, ao ponto de que não me surpreendia mais ao encontrá-las do que me surpreendia ao encontrar as mobílias. Eram só parte dos padrões de cada apartamento, cada vez numa disposição um pouquinho diferente da anterior.

Em certo nível, comecei a encontrar até mesmo interações que se repetiam de jeitos um pouquinho mais complexos, mais como encenações do que como simples atos de fato. Numa sala, duas pessoas se abraçavam no corredor, daí se soltavam, iam cada uma para um quarto, depois voltavam ao corredor e se abraçavam de novo.

Mais para frente, um casal dançava uma valsinha numa sala. E só fazia isso. Uma criança no mesmo apartamento não interagia com os dois, indo da cozinha para o quarto, onde deitava no chão olhando pro teto.

Em certo momento, comecei a encontrar gente fazendo sexo. Ou pelo menos simulando o que devia ser sexo. Eles faziam tudo sem expressões faciais, sem esboçar prazer, ou dor. Era mecânico. Também não se importavam com distinções, fosse de gênero, fosse de idade: às vezes era idosas com adultos, mulheres adultas com idosas, idosos com idosos etc.

Fiquei horrorizado ao ver pela primeira vez uma combinação de criança com criança. Depois, mais ainda ao ver uma idosa com uma menina. Separei esse casal. Elas não esboçaram reação alguma. Gritei com as duas, xingando especialmente a velha por fazer aquilo com uma criança. A senhora continuou sem reagir, nem pareceu me entender. Coloquei ela num dos quartos, a menina carreguei para o apartamento da frente.

A menina pareceu muito perdida e desconfortável. Quando a soltei, ela retornou em passinhos lentos para o apartamento de onde eu a tinha retirado, como se precisasse voltar ao seu próprio ciclo. Quando a segui de volta, vi que estava de novo fazendo com a idosa a mesma coisa de antes.

Fiquei indignado e tentei separar as duas várias vezes. Elas sempre se reencontravam quando eu desistia de impedir e voltavam ao seu mesmo padrão.

Desisti e segui caminho. E com o tempo fui me dessensibilizando também a isso.

Vi muitas uniões de todos os tipos, das mais terríveis possíveis. Vi depois três, quatro pessoas juntas, e vi depois orgias, ao ponto de que num apartamento tinha umas quinze pessoas juntas ocupando um quartinho, seguindo um intrincado padrão de troca de parceiros sexuais.

E daí já não me incomodavam mais esses novos padrões também, por mais perturbadores que fossem. Já não via aquelas pessoas exatamente como humanos, nesse estado em que já estava. Aceitei também que eu era só um, enquanto eles eram centenas, e que eu era impotente em maneiras para impedi-los, já que, quando eu finalmente ia embora, insistiam em voltar a fazer o mesmo que faziam antes que eu aparecesse.

E fui seguindo, cada vez mais fundo, apartamento após apartamento, corredor após corredor. Apartamentos vazios, apartamentos com uma pessoa, apartamentos com duas pessoas.

Apartamentos com gente sentada no chão sem fazer nada, apartamentos com gente dançando, apartamentos com gente chorando, apartamentos com gente rindo sozinha, apartamentos com gente fazendo sexo, apartamentos com gente andando em círculos, apartamentos com gente olhando para um ponto fixo numa parede, apartamentos com gente deitada no corredor.

Apartamentos com crianças, apartamentos com jovens, apartamentos com velhos. Apartamentos com três, quatro crianças. Apartamentos só com velhos. Apartamentos com três velhos, dois adultos, uma criança. Apartamentos com um velho, quatro adultos, duas crianças.

Apartamentos com vinte adultos. Apartamentos com dezesseis velhos.

As ações também continuaram evoluindo. Vi um apartamento em que uma menina e um menino brigavam.

E daí vim um apartamento com um cadáver. Foi o primeiro que vi e, mais uma vez, me surpreendi. Ele estava jogado no canto da cozinha, paradinho e bem conservado. Naquele apartamento, não tinha mais ninguém.

Depois, vi um apartamento em que uma idosa batia teimosamente contra o rosto já totalmente arrebentado do que tinha sido um homem. Ela não batia muito forte, mas a repetição já há muito tinha transformado a cabeça do morto em um resto gelatinoso.

Vi outras situações parecidas, em que pessoas continuavam interagindo com cadáveres que pareciam ter matado algum momento do passado. Vi outros cadáveres sozinhos, ao que pela primeira vez refleti se aquelas pessoas todas eram ou não mortais. Pensei ainda se todos os mortos tinham sido assassinadas por alguma outra pessoa ali embaixo. Só então considerei que aquela gente podia talvez navegar de um apartamento para outro, em alguns casos específicos.

Depois, vi aos poucos que isso acontecia sim. Primeiro, acompanhei fascinado uma mulher que tinha um padrão de ações que se estendia por visitas a quatro apartamentos diferentes. Em um deles, ela ficava na cozinha, de pé. No outro, ela ficava deitada no chão de um dos quartos. No próximo, ela ficava na sala dançando com um jovem moço. No último, ela abraçava uma menina.

Foi só a primeira que reparei ter esses padrões viajantes. Depois, vi outros mais complexos. Acompanhei uma idosa que viajava por vinte e nove apartamentos diferentes, fazendo uma coisa diferente em cada um.

E ia me enfiando mais e mais, mais e mais, mais e mais no fundo da terra.

Mas fiquei muito tempo, após essas descobertas todas, sem ver nada novo.

Parecia que eu tinha desvendado todos os possíveis tipos de apartamentos, de mobílias, de humanos, de ações que humanos podiam ter isoladamente, de interações que podiam ter uns com os outros, de padrões de visitas a apartamentos diferentes que podiam acontecer.

Fiquei entediado, seguindo por centenas de apartamentos adentro que insistiam nas mesmas repetições, mudando só uma coisa ou outra.

E depois por mais centenas de apartamentos.

E daí por mais vários, vários e vários outros.

E daí fui parar em mais um dos apartamentos que em primeiro momento parecia, como a maioria deles, estar vazio.

Ao abrir uma das portas, encontrei uma mulher. Cabelos castanhos escuros, bem pálida, parecia ter uns trinta e tantos anos.

Mas essa mulher, ao contrário das outras, estava vestida. Um vestido florido todo rasgado, embolorado, úmido, mas vestida.

E ao contrário das outras, ela olhou para mim como se me visse de verdade. O olhar era vesgo e meio alienado, mas ela me olhou.

E ao contrário das outras, ela disse algo. Mesmo que com uma voz muito frágil, esganiçada, algo.

Ela disse “oi”.

6.

Fiquei pelo que pareceram ser algumas semanas convivendo com a mulher de vestido florido que falava.

Ela foi a primeira que encontrei capaz de se comunicar. Apesar disso, ela não falava muita coisa: eram palavras e frases simples, como “oi”, “tudo bem”, “boa noite” (a qualquer hora, até por não termos noção de tempo lá embaixo).

Ela também só entendia o mínimo. Entendeu meu “oi”, logo quando nos conhecemos, mas quando perguntei seu nome, ela só repetiu “oi” outra vez.

Existia sim alguma troca, o que já era inédito em comparação com as pessoas de até então, mas era a partir de um entendimento muito, muito limitado. Ela me lembrou um pouco a um cachorro: se eu falasse qualquer coisa em voz brava, ela fazia uma cara triste. Se eu falasse numa voz feliz, ela reagia sorrindo.

Ela também parecia ter algum padrão de ações, embora fosse um pouco mais solto que os outros de até então. Se eu a deixasse livre, ela faria coisas como ir à cozinha e ficar sozinha de pé, voltar para o corredor e sentar-se no chão.

Mas se eu a levasse para o quarto em que ela nunca entrava sozinha, ela me acompanharia. Diria coisas desconexas como “oi”, “tudo bem”, “boa tarde”. E só quando eu me afastasse ela sairia do quarto também, às vezes voltando aos seus atos de sempre, às vezes me seguindo para ver onde eu iria.

Apesar das nossas conversas serem muito limitadas, a presença dela me deu alívio. Depois de tanto tempo sem ouvir nenhuma palavra dita por outra pessoa, eu sentia uma sensação boa ao escutar palavras vindas dela.

No dia em que constatei que já tinha estudado suficientemente do jeito que ela agia, decidi seguir em frente. Talvez em algum apartamento futuro eu encontrasse outra pessoa que se articulasse melhor.

Ao abrir a porta do apartamento seguinte para seguir viagem, perguntei para a moça de vestido florido se ela queria seguir caminho comigo.

Ela respondeu “bom dia”. Imaginei que isso significasse que ela não tinha entendido, ou que não me acompanharia, mas na verdade ela veio comigo sim, pelo menos por algum tempo. Depois de mais uma sequência de apartamentos (devem ter sido uns trinta, quarenta), ela desistiu e ficou para trás.

Eu demorei bastante para encontrar outra pessoa que falasse. A segunda que vi era uma senhorinha bem velha, bem enrugada, que também falava muito limitadamente, só algumas palavrinhas. Ela tinha comportamentos bem parecidos aos da moça do vestido florido, com a diferença sutil de que parecia reagir mais coerentemente ao que era perguntado, desde que fossem perguntas simples de “sim” e “não”.

Fiz vários testes com a senhora para tentar descobrir mais sobre os apartamentos. Repetia as mesmas perguntas com palavras diferentes várias vezes, para descobrir se ela seria consistente nas respostas, e na maior parte das vezes ela era.

A senhorinha disse “não” quando eu perguntei se ela sabia como tinha ido parar ali. Disse “não” quando eu perguntei se ela sabia quem tinha construído todos aqueles apartamentos. Disse “sim” quando eu perguntei se ela sempre tinha vivido naquele apartamento. Disse “sim” quando eu perguntei se ela gostava de mim.

Por algum tempo, eu senti algum carinho por aquela senhorinha com suas respostinhas educadas e simples.

Depois, fiquei curioso de novo em encontrar outras pessoas que talvez falassem mais do que ela.

E segui outra vez minha viagem.

7.

Depois de infinitos apartamentos em que segui encontrando muito ocasionalmente falantes (e mais raramente ainda alguns que falavam relativamente bem), passei o que senti serem quase quatro meses vivendo num apartamento em que estavam três pessoas.

Duas delas eram pessoas sem voz, com rotinas rígidas, duas idosas. Um cadáver também ficava largado num dos quartos, mas como ninguém mais interagia com ele, não pareceu muito importante.

Inclusive, foi através das repetições nos atos das pessoas sem voz que tentei estimar o tempo. Contei que uma das idosas demorava algo como oito minutos para realizar seu ciclo indo da cozinha ao corredor. E que depois demorava mais seis minutos para ir do corredor até a sala. Na sala, ela ficava quase duas horas, mas depois saía e ficava só três minutos no quarto ao lado, antes de voltar para a cozinha. O padrão todo, portanto, demorava algo em torno de cento e trinta minutos. Se eu contasse os padrões dela num dia, dava para estimar que seis repetições equivaliam a um pouco mais de doze horas.

Fiquei nesse apartamento específico por outro motivo, porém, não para contar horas.

Fiquei porque o terceiro habitante era um homem que era muito articulado.

Ele me disse que não tinha nome, por exemplo, mas disse que tinha vinte e nove anos. Disse que sempre tinha morado ali, com palavras dele mesmo, não só reagindo com “sim” e “não”. Eu perguntei se ele conhecia as pessoas que moravam com ele e ele disse que elas estavam lá desde sempre, também.

Foi muito bom ter alguém com quem conversar de novo. O homem era educado e suas respostas, embora um pouco frias ainda, eram o mais semelhante a um contato humano com alguém de verdade que eu tinha tido no que parecia ter sido uma eternidade.

No fim de nosso contato, eu sentia que ele era quase um amigo.

Mas conforme fui me habituando com sua presença, voltei a me sentir inquieto. Quis seguir em frente para descobrir novas coisas e assim o fiz.

No fundo, eu ainda queria alcançar o último corredor entre todos. Queria chegar no fim, num ponto em que tudo aquilo acabasse e desse em algum lugar.

Eu fantasiava constantemente com o que estaria lá na frente, nesse tal fim. Conforme o tempo passava e ia topando com novos e cada vez mais esquisitos fenômenos, pensava que no fim teria algo verdadeiramente extraordinário.

No começo, eram só apartamentos vazios. Depois, eram apartamentos com pessoas solitárias. Depois, achei alguns apartamentos com algumas pessoas juntas. Depois, fui vendo os padrões dessas pessoas se tornarem pouco a pouco mais complexos. Depois, encontrei pessoas que falavam!

Ali, eu já encontrava de tempo em tempo apartamentos com pessoas que não só falavam, mas falavam suficientemente bem para uma interação um pouquinho mais funcional.

É claro, a maioria dos apartamentos seguiam sendo vazios, meras repetições uns dos outros. Entre os com pessoas, era muito mais comum que fosse só uma e ainda daquelas silenciosas. Depois, apareciam volta e meia apartamentos com mais de um. Mais raros ainda eram aqueles com aglomerações mesmo. Os apartamentos com gente falante pareciam ser pouquíssimos em centenas. E dentre as poucas que falavam, as que falavam decentemente eram duas a três entre milhares.

Mas saber daqueles casos raros me motivava mais ainda a seguir em frente por todos os apartamentos sem graça.

Cada porta era sempre uma surpresa, uma promessa.

Era decepcionante quando o que encontrava era só outro lugar vazio, ou só mais das mesmas pessoas quietas de sempre, mas de tempo em tempo algo inusitado aparecia: duas pessoas sentadas em cima de uma poça de sangue, sem reagir, um cadáver jogado em cima de uma criança que batia palmas sem parar, uma menina pulando no mesmo lugar incessantemente enquanto contava até um milhão (e quando chegava ao um milhão, reiniciava a conta inteira), uma velha batendo com a cabeça na parede vez após outra, alguns doidos que cantavam vogais quebradiças num coro…

Se tivesse paciência e insistisse em continuar, sempre encontraria algo novo pela frente.

As pessoas que falavam bem foram aos poucos se tornando mais familiares, também, não pela constância (ainda eram raríssimas), mas simplesmente por aparecerem de tempos em tempos. Sempre que encontrava uma delas, passava pelo menos alguns dias conversando.

Uma era uma menininha que falava sobre gostar de brincar de pular corda, mas que não tinha corda nenhuma. Entreguei uma corda para ela das minhas próprias coisas e ela tentou pular (era terrível e demorou a aprender). Outro era um menino que gostava de brincar de pega-pega e brincamos várias vezes, até que eu cansasse. Encontrei uma mulher que só falava em rimas, uma velha que só falava cantando. Encontrei um velho falante que fazia sexo com um homem que não falava, tratando-o como um brinquedo sexual.

Esse homem especificamente me pareceu nojento e digno de recriminação quando o encontrei, mas depois fui topando, entre os articulados, com gente muito pior. Um rapaz tinha como passatempo cometer verdadeiros massacres: saía pelos apartamentos matando pessoas como se fossem nada. Divertia-se pensando nos jeitos mais criativos de ser hediondo: decapitações, abrir barrigas, empalar. Tinha feito várias ferramentas para suas violências a partir dos móveis que encontrava: tinha estacas de madeira podre, cordas para amarrar, farpas para enfiar por baixo de unhas.

Quando encontrei esse primeiro torturador, senti-me absolutamente horrorizado. Recriminei-o, mas ele não se importou nada comigo. Desisti e segui caminho, querendo me afastar dele logo. Mas, outra vez, o tempo foi me dessensibilizando, porque este caso foi só o primeiro de muitos. As pessoas que conversavam ainda eram pacíficas na maioria; mas os violentos me marcavam mais, até se tornarem outro padrão.

Num dos casos, já muito mais para frente, encontrei uma mulher por quem fiquei verdadeiramente obcecado. Fiquei muito, muito tempo com ela, muito mais do que tinha ficado em qualquer apartamento até então.

Passávamos dias e dias conversando. Ela era muito bonita, sensível, carinhosa. Nós nos beijávamos e abraçávamos. Foi conversando com ela que percebi, pela primeira vez, que não comia há muito tempo, nem dormia mais. Ela sorriu divertida quando eu contei isso e então, só pela piada, fingíamos dormir e almoçar juntos.

Andávamos pelos apartamentos, também, e ela seguiu viagem comigo por vários e vários corredores.

Um dia, porém, eu percebi algo que me deu um choque de desilusão e tristeza: ao chegar a um ponto em que já não podia ir em frente, essa mulher não conseguia mais me acompanhar.

Ela tinha atingido seu limite. Pediu para que eu não a abandonasse e ficasse ali com ela para sempre.

Fiquei ali com ela por muito tempo. Mas para sempre era tempo demais.

E eu ainda tinha curiosidade em seguir.

Impactado por esse evento, decidi testar uma hipótese nos apartamentos seguintes. Quando encontrei novamente pessoas complexas, desse tipo de pessoa que parecia fundamentalmente como alguém real, decidi acompanhá-las pelo máximo de tempo que pudesse.

O que descobri foi que, apesar de darem a ilusão de liberdade e autonomia, pela riqueza e complexidade de seus padrões, mesmo essas pessoas ainda tinham limites. Eram exatamente como as pessoas simples que não falavam, repetindo rotinas, exceto que nos seus casos as rotinas eram muitíssimo mais intrincadas e se adaptavam melhor às interações comigo.

Foi uma decepção enorme descobrir isso. Senti-me sozinho mais uma vez.

Daí para frente, nada mais me sensibilizou do mesmo jeito conforme seguia caminho pelos apartamentos. Vi massacres, cenas horrorosas, cadáveres e mais cadáveres, e muitas pessoas que pareciam complexas e reais, mas eu sempre acabava desvelando suas programações mais profundas.

As distrações com as pessoas e suas variações foram perdendo o encanto. Por um bom intervalo, parei de perder tempo com elas.

Só o que importava era seguir em frente, o mais rápido possível, e chegar o mais longe que fosse possível.

Eu queria encontrar o fim.

8.

Eu vivi muitas experiências dentro do labirinto de apartamentos.

Quando parei de me importar, tudo foi fluindo de um jeito mais descontrolado. Eu vi assassinatos na minha frente que não me sensibilizaram. Só pelo tédio, fiz sexo com pessoas que falavam, mas também com não falantes.

Eu encontrei uma grávida e a vi parir. Depois vi o bebê crescer, até ser adulto, e daí ser morto por um dos falantes de alta complexidade que estava ali só de passagem, divertindo-se ao matar.

Volta e meia, eu lembrava do mundo lá de cima, mundo que tinha noção de que já devia estar há centenas de milhares de quilômetros de distância de onde eu estava.

E comecei a ter, às vezes, vontade de voltar.

Fantasiei com a ideia de dar meia volta e fazer todo o caminho de retorno.

Mas sempre que pensava nisso, dois outros pensamentos logo vinham:

Primeiro, que eu tinha encontrado naquele labirinto de apartamentos e pessoas algo que era único, inexplicável, e que eu viveria assombrado pelo resto da minha vida se não descobrisse a raiz final daquilo tudo.

Talvez a resposta de tudo, o último dos apartamentos, estivesse logo depois da próxima porta.

Se desistisse, eu nunca ia saber.

Depois, me parecia contraproducente voltar. Iludido, eu sentia que já devia no mínimo ter passado da metade de todo aquele complexo de apartamentos, então daria mais trabalho e demandaria mais tempo fazer o caminho de volta do que seguir até o fim.

Talvez a saída desse em alguma outra caverna, em algum outro lugar, que me levasse por algum outro caminho para o mundo da superfície. Talvez eu saísse num outro parque da região, ou saísse em outro estado, outro país, outro planeta — não importava.

Mas eu nunca descobriria se desistisse.

Então eu segui, segui, segui.

Apartamento depois de apartamento.

Pessoa depois de pessoa.

Corredor depois de corredor.

Sempre em frente.

E a partir de certo momento, finalmente percebi uma nova evolução nos padrões.

Eles pareciam estar mudando numa única direção, o que era diferente da quase aleatoriedade de até então.

Agora, tornavam-se cada vez mais intensos e terríveis. Eu via cada vez mais constantemente situações com cadáveres, sangue, assassinos violentos. E as pessoas que falavam eram cada vez mais loucas: elas gritavam, berravam, diziam coisas horrorosas, faziam atrocidades brutais, sexuais e escatológicas umas com as outras.

E às vezes me convidavam para participar dessas atrocidades todas.

Eu recusava. Já não queria estudar ninguém, nem me envolver.

Só queria seguir para a próxima porta, sempre.

Em certo momento, as pessoas começaram a me ameaçar. Diziam que iam me matar. Eu não acreditava, já que até então ninguém tinha tentado tocar em mim para me fazer mal.

Um dia, entrei num apartamento em que fui atacado por um idoso com uma estaca de madeira. Eu consegui reagir e imobilizá-lo. Fiz com que ele prometesse que não me faria mal; mas quando o soltei, ele simplesmente me atacou de novo.

Lutamos até a morte. No caso, a morte dele. Ele simplesmente não desistiu de me matar, chegando a me seguir por centenas de apartamentos, até que eu o matasse.

Esse tipo de coisa começou a acontecer com frequência e intensidade. E no geral, eu sentia o clima de tudo mudando, de pouco em pouco: isso me dava uma sensação de alívio, até mais do que preocupação.

Porque assim sentia que estava evoluindo. Que estava chegando no fundo.

Que a mudança crescente indicava algo.

A partir daí, tive que me preparar melhor para os novos apartamentos em que entrava.

Várias pessoas tentaram me matar, mas várias também tentaram abusar de mim de outras formas: uma vez, fui refém durante semanas de um homem que conseguiu me amarrar com minhas próprias cordas; uma mulher me seduziu uma vez e tentou me estrangular até a morte enquanto transávamos; uma idosa em certo lugar fingiu-se de morta e, quando passei, mordeu-me no calcanhar, arrancando um naco de carne que demorou muito a cicatrizar.

As pessoas violentas se escondiam às vezes entre as pessoas que não falavam. Sempre que eu entrava num novo apartamento, podia ser atacado por alguém que parecia inofensivo. Alguém estar nu e com o olhar perdido, sentado de frente para uma parede, já não era mais garantia de segurança.

Em certo ponto, comecei por causa disso a atacar preventivamente todos que via. Nesse ponto, insisto no quanto eu já estava totalmente distante de ver qualquer humanidade naquela gente toda.

Além disso, estava só obcecado. Pura e simplesmente. Mesmo que os novos apartamentos começassem a representar mais e mais frequentemente uma ameaça à minha vida, eu não conseguia parar.

Eu precisava chegar no fim.

9.

Apesar da situação ter gradativamente piorado, ao ponto de todos os apartamentos em que tinha gente serem sempre tomados por algo tenebroso, aos poucos fui perdendo um tanto do meu pique.

Eu sabia que ia seguir em frente de qualquer jeito, então comecei a ir mais no meu ritmo. Continuava motivado pelo fim, é claro: estava disposto a seguir pelo resto da vida se precisasse, até alcançá-lo.

Então não adiantava muito correr, ou ir devagar. Não fazia tanta diferença correr mil apartamentos num dia, ou passar por um a cada mês. Fui aceitando que na verdade eu não fazia ideia do quanto ainda faltava pela frente.

O que eu tinha deixado para trás era o apego ao tempo.

Eu não pensava mais no tempo do mundo da superfície, nem tinha nenhum indício de urgência, nem refletia sobre quantos dias e dias e dias e quilômetros e quilômetros e quilômetros e apartamentos e apartamentos e apartamentos já tinham ficado para trás.

Então, desde que eu sentisse que estava avançando, podia fazer isso bem rápido (às vezes eu passava semanas correndo frenético pelo máximo de apartamentos possível) ou bem devagar (às vezes, eu ficava meses e meses parado num apartamento só, inclusive às vezes em apartamentos vazios de qualquer outra pessoa além de mim).

Eu comecei a viver vidas mesmo, nas viagens rumo ao próximo apartamento.

Numa situação, topei com uma mulher que imobilizei e amarrei. Ela falava — e falava muito — e ficamos dias conversando até que eu sentisse segurança em soltá-la.

Vivemos um relacionamento completo, com começo, meio e fim.

Quando acabou, eu segui em frente.

Depois, encontrei uma idosa. Eu senti que ela era como se minha mãe e abaixei minha guarda quando nos conhecemos, correndo um risco. Fiquei com ela esperando que morresse de velhice, mas um dia, após o que pareceram ser anos, ela foi assassinada por outra pessoa que invadiu seu apartamento.

Quando a vi morta, eu segui em frente.

Fiz uma grande amizade com um menino, que adotei como filho, depois de deixá-lo preso por algumas semanas para criar confiança. Eu o vi crescer. Seguimos por milhares de apartamentos, pelo que pareceram vários anos. Um dia, ele já como adulto formado me agradeceu por tudo que tinha feito e disse que não podia me acompanhar dali para frente. Eu tinha alcançado o limite das suas possibilidades.

Nós nos despedimos com um abraço. Choramos. Depois, eu segui em frente.

Um maníaco ficou obcecado por mim de uma maneira que não era violenta específica e exclusivamente comigo. Ficou durante um longo período me acompanhando na minha jornada. Era útil, já que ele me ajudava a matar qualquer um que nos ameaçasse. Ele foi uma das pessoas mais degradadas e absolutamente selvagens que eu conheci em todo o meu tempo no labirinto de apartamentos. Ele comia carne humana, torturava vítimas até o último momento enquanto sorria, era absolutamente cruel.

Em dado momento, alguém finalmente conseguiu matá-lo em combate. Eu só segui em frente, sem sentir nada a respeito.

Eu conheci uma mulher ensandecida, terrível e cruel. Ela era também uma das assassinas do pior tipo e gostava de todo tipo de coisa bizarra. Ela arrancava e comia os próprios cabelos, tinha olhos esbugalhados e vesgos, nenhum dente na boca, uma risada estridente. Era magra, cheia de cicatrizes e queimaduras, porque ela mesma gostava de se queimar e cortar.

Ela tinha vários fetiches estranhos comigo. Eu simplesmente aceitei. Tivemos um relacionamento terrível e ela engravidou. Vi meu próprio filho nascer num apartamento vazio, saindo daquela mulher horrorosa. Ela o matou ainda bebê, alguns dias depois do parto, e o comeu.

Eu não fiz nada a respeito.

Deixei-a para trás com os restos do cadáver de nosso filho e segui em frente.

10.

Eu tive vários outros filhos pelo caminho. Todos morreram de algum jeito, ou só ficaram para trás. Vários deles tentaram me matar, inclusive. Incesto também era algo que tentavam ocasionalmente: às vezes comigo, às vezes com a mãe, às vezes com ambos, às vezes entre irmãos.

Algumas das mães eram amorosas, mas a maioria não era. Em certo ponto, eu me acostumei totalmente com as mães que fizeram coisas terríveis na minha frente: para além do canibalismo com as crianças, vi outros abusos de todo tipo, incluindo sacrifícios para divindades que elas mesmas inventavam; também costumavam dar filhos e filhas como moeda de troca para os falantes violentos por quem passávamos.

Vi todo tipo de coisa grotesca, repugnante e hedionda, mas já não me parecia nada demais coisa alguma. Vi um apartamento onde o massacre foi tão violento que todas as paredes de todos os quartos estavam empapadas de sangue. Vi um apartamento onde só tinha sobrado uma enorme montanha de cadáveres. E depois vi um apartamento onde o que existia era uma montanha de cadáveres só de crianças.

Apartamento após apartamento, corredor após corredor. Conforme a situação ia se tornando gradativamente mais terrível, eu sentia que estava chegando a algum lugar.

Infelizmente, chegou um momento em que os apartamentos voltaram a se pacificar pouco a pouco. Foram se normalizando, até terem um padrão semelhante àquele que eu tinha visto no começo: estranhos, sim, mas menos sangrentos.

Fiquei extremamente frustrado quando isso aconteceu.

Segui obcecado por milhares de corredores, passando por milhões de portas, até começar um novo ciclo de apartamentos violentos.

Passei pelos apartamentos violentos todinhos, outra vez, até chegar num novo ciclo de apartamentos mais “pacíficos”.

E depois fiz a mesma coisa de novo. E de novo.

E de novo.

A leitura sobre estes ciclos longuíssimos de apartamentos não só se comprovou, como se mostrou até mais variada. Além dos apartamentos do tipo mais calmo e dos apartamentos do tipo mais violento, passei por ciclos de apartamentos absolutamente vazios (centenas de milhares deles seguidos, sem ninguém), por sequências de apartamentos onde todos pareciam tristes, ou felizes, ou indiferentes.

Toda vez que eu enxergava algum padrão que parecia me prometer que o final estava próximo, acabava depois me frustrando.

Só queria encontrar a última porta, o último apartamento.

Só queria encontrar o fim.

Eu segui, segui, segui.

E segui, segui, segui.

E segui, segui e segui.

Em dada hora, em que nada fora da normalidade acontecia, eu estava sentado num dos quartos de um apartamento, acompanhado de outro dos filhos que tive, nesse caso ainda criança, e da mãe desta criança.

Eu estava sentado no chão, observando os dois. Mãe e filho estavam sentados numa cama de madeira podre, só estrado, sem colchão.

A mãe era daquele tipo de pessoa detestável. Mas como não era nem mesmo do pior tipo nesse sentido, e como nela não havia originalidade alguma em comparação com tudo ao que eu fora exposto, já que eu tinha passado por infinitas outras parecidas e infinitas outras piores, ela só me entediava.

Naquele momento, ela estava falando absurdidades sobre assassinar nosso filho, ou sobre querer que eu abusasse dele, por fetiches incestuosos que possuía. Ao contrário de outras personalidades terríveis com quem eu já tinha topado, ela pelo menos dizia que queria esperar nosso filho crescer antes de fazer esse tipo de coisa. E até então ela só estava falando, ao invés de fazer.

O menino só chorava ao ouvir aquelas coisas terríveis. Ao contrário da mãe, parecia ser uma das pessoas que não falavam, o que só o tornava mais vulnerável, dispensável e passivo às crueldades dela e de qualquer outro sádico que talvez invadisse aquele apartamento em algum momento.

Olhando aquela situação, que era para mim entediante e habitual, tive um estalo. Percebi quem eu era, onde estava, o que estava fazendo.

Eu levantei subitamente.

A mãe da criança continuou com seus comentários maldosos e sarcásticos. O filho ainda chorava.

Ignorei ambos.

Saí do quarto e fui até o fim do corredor. Olhei para a porta fechada que dava para o próximo apartamento na sequência.

Eu a abri.

Atrás de mim, ouvi a mãe da criança perguntar, como sempre perguntava, se podia seguir junto comigo.

O apartamento da frente estava aparentemente vazio. No fim dele, eu conseguia ver a próxima porta que nesse caso estava escancarada (isso era bem raro).

Atrás de mim, a mãe ainda me xingava, a criança ainda chorava. Apenas para buscar silêncio, eu passei para o apartamento vazio da frente e fechei a porta atrás de mim.

A mulher com quem eu estava até então era na verdade de um apartamento centenas de milhares de apartamentos para trás. Ela continuou gritando bem alto suas ofensas, mas ouvi sua voz se afastando. Como a abandonei, ela retornou ao seu próprio ciclo. A criança chorosa também tinha se calado, talvez voltando para a sala em que tinha sido parida, milhares de salas para trás.

Fiquei alguns segundos naquele apartamento vazio. As mesmas paredes rochosas de sempre, úmidas e com infiltrações, emboloradas. A cozinha dessa vez ficava à direita, com um dos quartos.

O outro quarto ficava sozinho numa porta à esquerda. Nele, achei uma estante vazia, a mesma madeira podre habitual.

Era um padrão bastante comum.

Senti o silêncio do apartamento por um segundo.

E então senti uma mistura funda de frustração com paz.

Tentei me situar no mundo. Tentei também lembrar que supostamente estava ainda dentro de uma caverna, sabe-se lá quantos milhares de quilômetros para dentro da terra.

Depois, olhei para frente, para o fim do corredor.

O apartamento da frente pareceu estar vazio também.

Eu não ouvia nada nele, só silêncio.

Vasculhei com os olhos esse apartamento da frente, mas não entrei nele. Deu pra ver que a cozinha dessa vez era a primeira coisa, à esquerda, enquanto os dois quartos estavam bem no fundo do corredor, à esquerda também. E mais pro fundo ainda, depois dos quartos, tinha a porta que dava pro próximo apartamento, fechada.

Olhei para aquela porta, sem sair do lugar, nem entrar no apartamento vazio.

Pareceu para mim fazer muito sentido que fosse ali que eu parasse.

Em outro apartamento qualquer, idêntico a milhões de outros por onde eu tinha passado.

Foi ali que eu desisti.

Eu não ia chegar no final.

Nunca ia saber o que teria depois daquela próxima porta.

Talvez a próxima porta fosse a última.

Talvez não fosse, mas talvez fosse.

Eu dei meia volta.

E voltei.

11.

Passei de volta por todos os apartamentos. Todos. Revi tudo que tinha visto antes. Todas as pessoas, todos os padrões.

Todos por quem eu passava me olharam de outro jeito na volta.

Tinham expressões feias no rosto, como se me recriminassem. Os julgamentos ficaram só nos olhares, entretanto. Mesmo os que antes falavam agora só me encaravam em silêncio. Mesmo os que antes tinham sido violentos agora não tentaram me tocar.

Eu segui, segui, segui de volta.

Não sei dizer exatamente quanto tempo demorei para voltar, mas pareceu demorar um pouco menos do que a ida, por mais estranho que pareça. Dessa vez, também, eu me sentia menos ansioso: naquela direção, eu sabia onde tudo aquilo ia acabar.

No caminho de volta todo, fiquei muito assombrado pela tentação de “desistir de desistir”.

Pensava naquela última porta que não tinha aberto.

Pensava que talvez ela pudesse ser a última.

Pensava em voltar atrás para abrir “só mais aquela”.

Mas não fiz isso.

Continuei meu caminho de retorno à superfície.

No final, passei pela mesma criança chorando pela qual tinha passado no começo. Eu a reconheci com a primeira pessoa que tinha encontrado em algum dos apartamentos.

Eu relembrei minha promessa longínqua de voltar por ela e disse, sorridente, que tinha a cumprido. Tinha voltado para buscá-la. Perguntei se a criança queria voltar ao mundo de cima comigo.

Ela ficou só me olhando, sem reagir.

Eu sorri.

Segui meu caminho. Encontrei o primeiríssimo dos apartamentos depois, com a sua cama mofada como incontáveis outras que eu tinha visto.

Lembrei como aquele apartamento tinha parecido fantástico quando passei por ele pela primeira vez. Sorri. Sentei na cama por um instante e pensei na minha trajetória.

Escutei uma última vez o silêncio, os pingos de água.

Depois segui para a porta de entrada, deixando o apartamento para trás.

Subi de volta pela escadaria toda.

Depois subi todos os caminhos da caverna. Dei a sorte da bateria da minha lanterna ter acabado exatamente quando estava na saída.

E daí saí de volta ao mundo numa madrugada bem fria.

12.

Na superfície, tudo que eu vivi na sequência infinita de apartamentos durou só quinze horas. Parecia pouco, pouquíssimo, pelo tempo que eu sentia ter passado lá embaixo. Mas para o mundo normal, era sim bastante tempo. Estavam preocupados comigo, já me dando por desaparecido.

Ninguém acreditou em mim quando disse que tinha passado “aquele tempo todo” lá dentro. Então desconversei, dizendo que tinha saído da caverna e que provavelmente não tinham me visto. Pedi desculpas e disse que não sabia que procuravam por mim.

Três dias mais tarde (anteontem, a partir de quando escrevo isso), pedi a uma colega que me acompanhasse mais fundo na caverna, numa manhã em que uma turma de excursão não veio.

Ela aceitou e seguimos caminho para além da zona de turistas.

Tentei encontrar a fenda outra vez, mas não a achei de jeito nenhum.

Onde ela devia estar, só o que vi foi uma rocha como todas as outras.

E com isso me dei por satisfeito.

Aqui em Eldorado continua muito quente, daquele jeito bem infernal. Apesar de ainda não gostar da cidade, venho sentindo menos vontade de me mudar daqui. Para não ficar enfurnado em casa torrando pelo calor, ontem mesmo aceitei um convite para ir pro bar. Não foi lá muito divertido, mas deu pro gasto.

Nunca vou descobrir o que tinha depois daquela última porta que não atravessei.

Podia ser só outro apartamento sem ninguém, só outro conjunto de pessoas apáticas, ou horríveis.

Ou podia ser qualquer outra coisa.

Qualquer coisa mesmo.

Nunca vou saber.

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